Por: Antonio Francisco Ramos
Mestre em Ciência Política/UFPI
Prof. de Sociologia do IFPI/Campus Angical do Piauí
e-mail: francisco.ramos@ifpi.edu.br
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redução da maioridade penal seria a solução
para as violências praticadas por adolescentes no Brasil? Esta é uma questão cuja
resposta divide a opinião pública, particularmente nas ocasiões em que o
imaginário coletivo está impregnado de pensamentos, imagens e emoções de situações
tabus reiteradamente evocadas pelos meios de comunicação de massa e redes
sociais na internet (facebook, twiter, whatsapp etc.), a exemplo do episódio
que envolveu a prática de violências contra quatro adolescentes no município de
Castelo do Piauí, em 27 de maio de 2015, a quem se atribui autoria a quatro
adolescentes e um adulto. Nesse amálgama de emoções e racionalizações sobre o
assunto é importante pensar algumas questões básicas: Quais as causas do
comportamento violento? Qual o papel do Estado e da sociedade na prevenção ou
contenção desse tipo de comportamento? A mudança na lei implica em mudança na
realidade?
A
violência é um fenômeno social tão antigo quanto à própria humanidade e envolve
relações de poder, em ocasiões em que o ser humano dotado de instrumentos
potencializadores (tangíveis ou intangíveis) impõe sua vontade a outrem,
forjando uma dominação ilegítima por meio de um consentimento e obediência
forçada. A origem da palavra violência remete à expressão latina “vis” que significa “força”, ou seja,
uma ideia da imposição de vantagem por meio do porte físico e do uso mecânico
do próprio corpo. Entretanto, o fato do significado original da palavra remeter
à ideia de força física, não significa dizer que é determinada biologicamente,
pois ela é aprendida nos processos de socialização de forma implícita
(violência simbólica e psicológica) ou explicita (castigo físico, xingamentos e
incivilidades), portanto ninguém nasce violento.
A violência
é um fenômeno social dotado de sentidos e significados atribuídos por seus
atores e que podem variar de acordo com o contexto histórico e sociocultural em
que a trama das relações sociais acontece, possuindo uma direcionalidade, mesmo
que seja autoinfringida, a exemplo do suicídio. Por ter variações de sentidos e
significados, talvez, seja mais adequado se falar de violência no plural, seja
para aquelas que se manifestam no plano das relações interpessoais (gênero,
raça/etnia e idade) ou estruturais (modo de produção/classes sociais), que
dificilmente existem de forma desconexa.
Pensar
o fenômeno das violências no plano das relações interpessoais é lembrar que
nossa estrutura social foi erigida sobre o modo de produção escravista e numa
cultura patriarcalista que colocava as mulheres e escravos em condição de
inferioridade, enquanto que a infância e adolescência nem se quer eram
reconhecidas. As mulheres se situavam na condição de objetos de satisfação
sexual e trocas simbólicas entre famílias na perpetuação das linhagens e estatus que geravam prestigio social. Já
os escravos estavam condenados na condição de objetos de exploração da força do
trabalho forçado, exceto para aqueles que resistiam por meio das fugas. Para os
dias atuais esses fatos são inconcebíveis e previstos como crimes que violam os
direitos humanos visto que podem se caracterizar como violências alicerçadas em
desigualdades de gênero e raça/etnia.
Dessas
relações que eram comuns e normais para a sociedade e o Estado, até século XIX,
nos dias de hoje apresenta-se como marcas de uma violência estrutural que se
reproduz nas relações do sistema capitalista, que possibilitou a liberdade sem
igualdade e fraternidade. Os dados dos últimos censos do IBGE evidenciam nitidamente
que as pessoas negras e pardas, além das mulheres, compõe a parte da sociedade
que menos tem acesso aos direitos que lhes garantam o desenvolvimento com
liberdade, a exemplo saúde, terra, renda, segurança e educação. Apesar da educação,
particularmente a básica, ter sido ampliada, em termo de acesso, ainda é
precária em qualidade, e insuficiente às crianças em idade de creche e aos jovens
em idade de cursar o ensino médio.
Tal
fato contribui para a reprodução do que se convencionou chamar de violência
estrutural presente no Brasil e rigorosamente caracterizado no “Diagnóstico da
Situação da Criança e Adolescentes de Castelo do Piauí (2014)”, produzido pelo
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Castelo do Piauí
para o qual a mostrava a tendência para reprodução de violências que violam
direitos básicos como a “liberdade, respeito e dignidade”. A violência
estrutural afeta diretamente a dinâmica da família enquanto grupo social
responsável pelo processo de socialização das gerações mais jovens, particularmente
no contexto do reconhecimento dos direitos das crianças e adolescentes como
pessoa em condição peculiar de desenvolvimento. Esse reconhecimento gerou uma
partilha formal de responsabilidade entre a família, a sociedade e o Estado na
criação de condição para que a criança pudesse ter garantia para o seu pleno
desenvolvimento pessoal e social.
Este
reconhecimento e partilha não garantiu a cidadania, na medida em que os
direitos assegurados no Estatuto da Criança e do Adolescente ainda se
apresentam como uma realidade distante para aquela população que se encontra
nas situações descritas anteriormente. O diagnóstico de Castelo do Piauí revela
que a maioria das vitimas de violências são do sexo feminino e os adolescentes
a quem se atribui a autoria dos atos infracionais são do sexo masculino, com um
ponto incomum, todos se encontram em situação de exclusão social vivendo em regiões
em que há maior concentração de vulnerabilidade social. Por trás das ações violentas
certamente estão violações anteriores que tendem a ser reproduzidas na vida
cotidiana pela inoperância dos aparelhos ideológicos (escolas, igrejas, conselhos)
e repressores (polícias).
Como
garantir o desenvolvimento de uma criança ou um adolescente onde o Estado é
ausente na promoção de políticas públicas que transforme efetivamente a
realidade desses contextos? Num momento em que a sociedade não confia no Estado,
onde se expande os negócios escusos por meio de tráfico de drogas e roubos de
veículos que não aparecem nos registros policiais locais e que parece reproduzir
relações sociais presentes em muitas realidades espalhadas pelo Brasil? Se a
família falha é dever da sociedade assumir o papel de proteção e garantia de
direito para que as crianças e adolescentes se desenvolvam e tenham autonomia e
liberdade. Mas aqui a sociedade aparece com uma postura omissa. Será que isso é
reflexo das leis criadas aos moldes dos princípios da Revolução Francesa, visto
que para o Brasil o ideário de fraternidade é natimorto, ou seja, não existe de
fato? Ou permanecer assim interessa a alguém? Então se falha a família e a
sociedade, entra o Estado interventor.
O
que tem feito o Estado? O Estado teria dentre suas prerrogativas principais a
garantia do bem maior que é a vida por meio da paz. A sociedade erigiu um pacto
que ao longo do tempo tem se concretizado pelo que se convencionou chamar de
políticas públicas, dentre as quais o Sistema de Informação para a Infância e
Adolescência (SIPIA) que daria luz para a justiça cega de informações sobre a
realidade, particularmente acerca da situação das crianças e adolescentes
vítimas de violações de direitos e violências, a exemplo do que ocorre no Piauí.
Citam-se ainda as medidas socioeducativas vinculadas ao Sistema Nacional de
Medidas Socioeducativas (SINASE) e voltada para a responsabilização e inclusão
social dos adolescentes a quem se atribui a autoria de atos infracionais
(crimes). E quando as medidas não existem na prática, exceto a internação? E
quando falta o juiz diante das demandas? E agora de quem é a bola?
Certamente
agora é de nossa juventude que parece torna-se “bode expiatório”, para quem se
atribui a responsabilidade pela incapacidade do poder socializante dos grupos e
organizações sociais propiciadoras do desenvolvimento e individualização da
pessoa humana na contemporaneidade, que se abre cada vez mais para as babás
eletrônicas e a pseudoautonomia proporcionada pelo rápido acesso a informação
disponibilizada em mídias eletrônica (tablets, smartphones e computadores) e
internet, por onde se propaga diversas formas de sociabilidade que as famílias
e o próprio Estado têm pouco ou nenhum controle.
Nesse
contexto, a proposta de redução da maioridade penal de 18 para 16 anos é uma
estratégia pífia proposta por aqueles que querem tirar do Estado a
responsabilidade de exercer o seu papel de protetor e garantidor de direitos
desenhando uma imagem de que crianças e adolescentes são em si as causas dos
crimes e violências.
A incidência
de crimes e violências atribuídos aos adolescentes aparece em proporção menor
que as cometida por adultos, da mesma maneira a reincidência conforme o “Mapa
de encarceramento no Brasil (2015)” feito em parceria da Secretaria-Geral da Presidência
da República, Secretaria Nacional de Juventude e Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD). As crianças e
adolescentes necessitam nesse momento é de ações por parte do Estado e da
sociedade que possam efetivamente criar uma ambiência de paz, igualdade e
fraternidade, respeito e dignidade para que todos possam usufruir suas
liberdades com responsabilidade.
Reduzir
a maioridade penal, por meio da crença mágica de que alterar o texto da lei seja
possível mudar a realidade da violência e crimes no Brasil, é um passo para a
institucionalização de outros costumes latentes no Brasil, que anseiam pela
normalização das relações adultocêntricas em que as crianças e adolescentes
aparecem cotidianamente em cenas de trabalho infanto-juvenil, erotização nas
novelas, palcos dos bailes funk e por ai vai.
Portanto,
o Brasil passa por uma crise de valores e costumes inaugurada com a
Constituição Federal de 1988, que instituiu no plano formal o reconhecimento de
novas identidades e relações de poder que exigem do Estado novas políticas de
identidade para além do texto da lei, mas por meio de ações concretas que
possam transformar a realidade de todos aqueles que são vitimizados (vitimas e
infratores) nesse jogo de poder e interesses, mas que ficam nas sombras das
frágeis pesquisas de opinião divulgadas nos meios de comunicação e que
escamoteiam a realidade por meio da generalização de fatos locais como verdades
universais.
Bibliografia
ARAÚJO, Edimilson, Pereira; RAMOS,
Antonio Francisco. Diagnóstico da
situação da criança e do adolescente. EDUFPI, 2014.
BRASIL.
Presidência da República. Secretaria Geral. Mapa do encarceramento: os jovens do Brasil/Secretaria-Geral da Presidência
da República e Secretaria Nacional de Juventude. Brasília: Presidência da República, 2015.
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