sexta-feira, 5 de junho de 2015

A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENALCOMO SOLUÇÃO PARA A VIOLÊNCIA



Por: Antonio Francisco Ramos
Mestre em Ciência Política/UFPI
Prof. de Sociologia do IFPI/Campus Angical do Piauí
e-mail: francisco.ramos@ifpi.edu.br



A
 redução da maioridade penal seria a solução para as violências praticadas por adolescentes no Brasil? Esta é uma questão cuja resposta divide a opinião pública, particularmente nas ocasiões em que o imaginário coletivo está impregnado de pensamentos, imagens e emoções de situações tabus reiteradamente evocadas pelos meios de comunicação de massa e redes sociais na internet (facebook, twiter, whatsapp etc.), a exemplo do episódio que envolveu a prática de violências contra quatro adolescentes no município de Castelo do Piauí, em 27 de maio de 2015, a quem se atribui autoria a quatro adolescentes e um adulto. Nesse amálgama de emoções e racionalizações sobre o assunto é importante pensar algumas questões básicas: Quais as causas do comportamento violento? Qual o papel do Estado e da sociedade na prevenção ou contenção desse tipo de comportamento? A mudança na lei implica em mudança na realidade?
A violência é um fenômeno social tão antigo quanto à própria humanidade e envolve relações de poder, em ocasiões em que o ser humano dotado de instrumentos potencializadores (tangíveis ou intangíveis) impõe sua vontade a outrem, forjando uma dominação ilegítima por meio de um consentimento e obediência forçada. A origem da palavra violência remete à expressão latina “vis” que significa “força”, ou seja, uma ideia da imposição de vantagem por meio do porte físico e do uso mecânico do próprio corpo. Entretanto, o fato do significado original da palavra remeter à ideia de força física, não significa dizer que é determinada biologicamente, pois ela é aprendida nos processos de socialização de forma implícita (violência simbólica e psicológica) ou explicita (castigo físico, xingamentos e incivilidades), portanto ninguém nasce violento.
A violência é um fenômeno social dotado de sentidos e significados atribuídos por seus atores e que podem variar de acordo com o contexto histórico e sociocultural em que a trama das relações sociais acontece, possuindo uma direcionalidade, mesmo que seja autoinfringida, a exemplo do suicídio. Por ter variações de sentidos e significados, talvez, seja mais adequado se falar de violência no plural, seja para aquelas que se manifestam no plano das relações interpessoais (gênero, raça/etnia e idade) ou estruturais (modo de produção/classes sociais), que dificilmente existem de forma desconexa.
Pensar o fenômeno das violências no plano das relações interpessoais é lembrar que nossa estrutura social foi erigida sobre o modo de produção escravista e numa cultura patriarcalista que colocava as mulheres e escravos em condição de inferioridade, enquanto que a infância e adolescência nem se quer eram reconhecidas. As mulheres se situavam na condição de objetos de satisfação sexual e trocas simbólicas entre famílias na perpetuação das linhagens e estatus que geravam prestigio social. Já os escravos estavam condenados na condição de objetos de exploração da força do trabalho forçado, exceto para aqueles que resistiam por meio das fugas. Para os dias atuais esses fatos são inconcebíveis e previstos como crimes que violam os direitos humanos visto que podem se caracterizar como violências alicerçadas em desigualdades de gênero e raça/etnia.
Dessas relações que eram comuns e normais para a sociedade e o Estado, até século XIX, nos dias de hoje apresenta-se como marcas de uma violência estrutural que se reproduz nas relações do sistema capitalista, que possibilitou a liberdade sem igualdade e fraternidade. Os dados dos últimos censos do IBGE evidenciam nitidamente que as pessoas negras e pardas, além das mulheres, compõe a parte da sociedade que menos tem acesso aos direitos que lhes garantam o desenvolvimento com liberdade, a exemplo saúde, terra, renda, segurança e educação. Apesar da educação, particularmente a básica, ter sido ampliada, em termo de acesso, ainda é precária em qualidade, e insuficiente às crianças em idade de creche e aos jovens em idade de cursar o ensino médio.
Tal fato contribui para a reprodução do que se convencionou chamar de violência estrutural presente no Brasil e rigorosamente caracterizado no “Diagnóstico da Situação da Criança e Adolescentes de Castelo do Piauí (2014)”, produzido pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Castelo do Piauí para o qual a mostrava a tendência para reprodução de violências que violam direitos básicos como a “liberdade, respeito e dignidade”. A violência estrutural afeta diretamente a dinâmica da família enquanto grupo social responsável pelo processo de socialização das gerações mais jovens, particularmente no contexto do reconhecimento dos direitos das crianças e adolescentes como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento. Esse reconhecimento gerou uma partilha formal de responsabilidade entre a família, a sociedade e o Estado na criação de condição para que a criança pudesse ter garantia para o seu pleno desenvolvimento pessoal e social.
Este reconhecimento e partilha não garantiu a cidadania, na medida em que os direitos assegurados no Estatuto da Criança e do Adolescente ainda se apresentam como uma realidade distante para aquela população que se encontra nas situações descritas anteriormente. O diagnóstico de Castelo do Piauí revela que a maioria das vitimas de violências são do sexo feminino e os adolescentes a quem se atribui a autoria dos atos infracionais são do sexo masculino, com um ponto incomum, todos se encontram em situação de exclusão social vivendo em regiões em que há maior concentração de vulnerabilidade social. Por trás das ações violentas certamente estão violações anteriores que tendem a ser reproduzidas na vida cotidiana pela inoperância dos aparelhos ideológicos (escolas, igrejas, conselhos) e repressores (polícias).
Como garantir o desenvolvimento de uma criança ou um adolescente onde o Estado é ausente na promoção de políticas públicas que transforme efetivamente a realidade desses contextos? Num momento em que a sociedade não confia no Estado, onde se expande os negócios escusos por meio de tráfico de drogas e roubos de veículos que não aparecem nos registros policiais locais e que parece reproduzir relações sociais presentes em muitas realidades espalhadas pelo Brasil? Se a família falha é dever da sociedade assumir o papel de proteção e garantia de direito para que as crianças e adolescentes se desenvolvam e tenham autonomia e liberdade. Mas aqui a sociedade aparece com uma postura omissa. Será que isso é reflexo das leis criadas aos moldes dos princípios da Revolução Francesa, visto que para o Brasil o ideário de fraternidade é natimorto, ou seja, não existe de fato? Ou permanecer assim interessa a alguém? Então se falha a família e a sociedade, entra o Estado interventor.
O que tem feito o Estado? O Estado teria dentre suas prerrogativas principais a garantia do bem maior que é a vida por meio da paz. A sociedade erigiu um pacto que ao longo do tempo tem se concretizado pelo que se convencionou chamar de políticas públicas, dentre as quais o Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (SIPIA) que daria luz para a justiça cega de informações sobre a realidade, particularmente acerca da situação das crianças e adolescentes vítimas de violações de direitos e violências, a exemplo do que ocorre no Piauí. Citam-se ainda as medidas socioeducativas vinculadas ao Sistema Nacional de Medidas Socioeducativas (SINASE) e voltada para a responsabilização e inclusão social dos adolescentes a quem se atribui a autoria de atos infracionais (crimes). E quando as medidas não existem na prática, exceto a internação? E quando falta o juiz diante das demandas? E agora de quem é a bola?
Certamente agora é de nossa juventude que parece torna-se “bode expiatório”, para quem se atribui a responsabilidade pela incapacidade do poder socializante dos grupos e organizações sociais propiciadoras do desenvolvimento e individualização da pessoa humana na contemporaneidade, que se abre cada vez mais para as babás eletrônicas e a pseudoautonomia proporcionada pelo rápido acesso a informação disponibilizada em mídias eletrônica (tablets, smartphones e computadores) e internet, por onde se propaga diversas formas de sociabilidade que as famílias e o próprio Estado têm pouco ou nenhum controle.
Nesse contexto, a proposta de redução da maioridade penal de 18 para 16 anos é uma estratégia pífia proposta por aqueles que querem tirar do Estado a responsabilidade de exercer o seu papel de protetor e garantidor de direitos desenhando uma imagem de que crianças e adolescentes são em si as causas dos crimes e violências.
A incidência de crimes e violências atribuídos aos adolescentes aparece em proporção menor que as cometida por adultos, da mesma maneira a reincidência conforme o “Mapa de encarceramento no Brasil (2015)” feito em parceria da Secretaria-Geral da Presidência da República, Secretaria Nacional de Juventude e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).  As crianças e adolescentes necessitam nesse momento é de ações por parte do Estado e da sociedade que possam efetivamente criar uma ambiência de paz, igualdade e fraternidade, respeito e dignidade para que todos possam usufruir suas liberdades com responsabilidade.
Reduzir a maioridade penal, por meio da crença mágica de que alterar o texto da lei seja possível mudar a realidade da violência e crimes no Brasil, é um passo para a institucionalização de outros costumes latentes no Brasil, que anseiam pela normalização das relações adultocêntricas em que as crianças e adolescentes aparecem cotidianamente em cenas de trabalho infanto-juvenil, erotização nas novelas, palcos dos bailes funk e por ai vai.
Portanto, o Brasil passa por uma crise de valores e costumes inaugurada com a Constituição Federal de 1988, que instituiu no plano formal o reconhecimento de novas identidades e relações de poder que exigem do Estado novas políticas de identidade para além do texto da lei, mas por meio de ações concretas que possam transformar a realidade de todos aqueles que são vitimizados (vitimas e infratores) nesse jogo de poder e interesses, mas que ficam nas sombras das frágeis pesquisas de opinião divulgadas nos meios de comunicação e que escamoteiam a realidade por meio da generalização de fatos locais como verdades universais.

Bibliografia
ARAÚJO, Edimilson, Pereira; RAMOS, Antonio Francisco. Diagnóstico da situação da criança e do adolescente. EDUFPI, 2014.

BRASIL. Presidência da República. Secretaria Geral. Mapa do encarceramento: os jovens do Brasil/Secretaria-Geral da Presidência da República e Secretaria Nacional de Juventude.  Brasília: Presidência da República, 2015.

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